De 18-20 de setembro, a Internacional Progressista realizará seu congresso inaugural, agregando membros de todo o planeta. Nele, discutiremos o lawfare empregado pela direita na América Latina, mediado pelo coletivo Wiphalas Across the World e participações de Luis Acre, Andrés Arauz, Alicia Castro. Cadastre-se aqui para participar.
Internacional Progressista: Como o senhor descreveria a atual conjuntura no Equador?
Guillaume Long: A atual conjuntura no Equadoré sobre se a democracia vai triunfar ou perecer em plena luz do dia pelas mãos de um governo cada vez mais autoritário.
Na verdade, é fascinante pensar que a própria estética e o percurso político deste governo foi dirigido para a ‘democratização’. Tratava-se da idéia, vendida pelas elites, de que por 10 anos Correa conduzira o Equador sob o domínio do populismo e de um 'projeto autoritário' e, portanto, após esse período era preciso ‘descorreizar', como se diz em espanhol, desmanchar o Estado de Correa e as instituições correístas, e democratizar o país.
Porém, desde o fim do governo de Correa, em maio de 2017, o que temos é um projeto cada vez mais autoritário. Nós o chamamos de ‘autoritarismo neoliberal’, e o que ocorre agora é justamente o oposto da democratização. O poder executivo exerce um controle quase total sobre o sistema de justiça, o que tem levado a uma enorme onda de perseguição judicial ou ‘guerra legal’ contra a oposição, tudo dirigido pelo governo.
E o autoritarismo se infiltra de diversos modos. A repressão dos protestos nas ruas assume uma forma inédita. Se você pensar nos protestos de outubro de 2019 - provavelmente os maiores da história contemporânea do Equador, e certamente os maiores da minha geração -, eles foram respondidos com violações dos direitos humanos, extremamente repressivas e brutais algo que o Equador não vivia há décadas. Houve 11 mortes nas ruas, cerca de 1.500 pessoas feridas, e mais de 1.200 pessoas detidas.
Portanto, há uma verdadeira invasão de práticas autoritárias em todos os sentidos, seja na ruptura de controles e equilíbrios institucionais, seja na repressão dos protestos e direitos humanos, e agora, pela primeira vez em décadas, há presos políticos. Algumas pessoas, inclusive funcionários eleitos, foram detidas e mantidas em prisão preventiva durante meses por causa de coisas que disseram nas mídias sociais. Membros seniores do movimento de Correa foram julgados e acusados de ‘rebelião’ por pedirem a demissão do presidente, o que é completamente legal e está contemplado na Constituição. Após os protestos de outubro houve uma onda de detenções de pessoas que tinham sido eleitas poucos meses antes, entre elas o prefeito de Pichincha, o equivalente ao governador do estado onde se localiza Quito, a capital do Equador. A governadora daquela província, Paola Pabon, que pertence ao movimento correísta Movimiento Revolucionario Ciudadano, foi presa novamente acusada de rebelião, e ficou detida por vários meses. Mais tarde foi solta, mas o julgamento continua em andamento.
Agora temos políticos da oposição no exílio que se tornaram solicitantes de asilo - entre eles legisladores eleitos, membros da Assembléia Nacional que tiveram que fugir do país. Isto tampouco acontecia há várias décadas. Essas pessoas tiveram de fugir do Equador por coisas que disseram, pelo papel assumido nos protestos, por temerem represálias ou para garantirem a segurança de suas famílias.
Isto significa essencialmente que este autoritarismo neoliberal é, na verdade, o retorno do que na América Latina se entende por ‘la guerra interna’- toda essa doutrina baseada na contra insurgência, nas ameaças internas à segurança nacional, na repressão da esquerda e dos progressistas. É um verdadeiro retorno ao clima da Guerra Fria.
IP: Há uma relação muito interessante entre ‘la guerra interna’ que acontece no Equador e a internacionalização das estratégias legais para corroer as instituições democráticas. Como o senhor vê o Equador no contexto de transformação mundial mais ampla?
GL: Penso que este é um projeto geopolítico regional conduzido por elites latino-americanas, em aliança com certos setores dos Estados Unidos. É realmente impressionante como a situação se repete em países latino-americanos muito diferentes.
Esse fenômeno surgiu após uma fase progressista na história da América Latina. Um número importante de Estados queria ter uma relação diferente com o mundo e com os Estados Unidos, buscavam um modelo de desenvolvimento diferente, uma economia diferente, com um papel maior para o Estado, regulamentação estatal, investimentos públicos e, naturalmente, grande ênfase na redução da pobreza e das desigualdades.Entre 2000 e 2012, t essas mudanças tiraram cerca de 90 milhões de pessoas da pobreza.
Agora há uma nova fase na história da América Latina, marcada pelo retorno dos governos conservadores, sobretudo desde o declínio dascommoditiesem 2014-2015. Houve, também, um certo cansaço político acompanhado pelos problemas econômicos.
Certamente, no caso do Equador, os anos de 2015-2016 foram muito ruins em termos de crescimento, mas não houve aumento da pobreza nem da desigualdade. Na verdade, apesar do choque externo, a pobreza continuou a diminuir, embora a um ritmo mais lento. Ainda assim, foi um momento difícil na América Latina que , levou à volta da direita ao poder por diversos meios.
Em alguns casos isto ocorreu por meio de eleições, como na Argentina; em outros, com golpes de Estado. De fato, eles começaram primeiro em Honduras, posteriormente no Paraguai,e em seguida no Brasil e, finalmente, de forma muito brutal na Bolívia. Em outros casos, como no Equador, houve um mecanismo totalmente diferente: o sucessor, vitorioso devido à perspectiva de prosseguir com a Revolução Cidadã, muda o tom e se torna uma espécie de Cavalo de Tróia - uma traição política, no sentido shakespeariano, com a inversão de marcha para 180 graus à direita.
Então, a direita chegou ao poder de distintas maneiras nos diferentes países, e orquestrou programas semelhantes tanto na frente econômica - o retorno dos programas neoliberais de ajuste estrutural do FMI e das políticas de austeridade - quanto na frente política e judicial da perseguição política.
A esquerda está sendo perseguida nos países onde a direita conseguiu voltar ao poder, e de um modo muito semelhante. A idéia é assegurar que os líderes históricos da esquerda não possam voltar ao poder. No caso do Brasil, Lula foi preso porque teria vencido as eleições contra Bolsonaro e, no Equador, Correa está fora do país porque a sua popularidade prejudicaria muito o novo pacto da elite governante e ajudaria os progressistas a voltarem ao poder.
Da mesma forma, se você atentar para o processo judicial contra Correa, baseado em um caderno de anotações duvidoso, assemelha-se a um caso semelhante na Argentina. Exatamente com a mesma técnica - quantias a receber e provas muito duvidosas, mas há um fenômeno de ‘copia e cola’ entre Argentina e Equador. Entre Equador e Bolívia as tentativas de impedir o MAS (Movimiento al Socialismo) de concorrer nas próximas eleições bolivianas são muito semelhantes às tentativas de impediro partidode existir e, claro, de concorrer nas próximas eleições de fevereiro de 2021 no Equador. As tentativas de bloquear o candidato na Bolívia, Luis Arce, se assemelham às tentativas de bloquear Correa no Equador. A sentença que Correa recebeu em abril o condena a oito anos de prisão, mas o fator principal é que o priva de direitos políticos por 25 anos, impedindo-o de ser candidato na política equatoriana durante esse período.
Acredito que nos lugares onde a democracia tem uma chance existe a probabilidade de se eleger governos progressistas. A Argentina é um exemplo claro disso. Por quê? Porque uma coisa é querer uma mudança e votar na direita, após 10 ou 15 anos de governo progressista. No entanto, quando o neoliberalismo é adotado por esses governos de direita, que prometem mudanças de forma agressiva mediante empréstimos e condicionalidades do FMI, as pessoas percebem que esse não é o tipo de mudança que queriam.
O povo tem uma memória muito viva do que foi a governança progressista: o retorno da soberania, a redução da pobreza e da desigualdade, grandes obras de infraestrutura com um impacto real no emprego e na economia, e também nos direitos: construção de escolas, hospitais e rodovias em algumas das partes mais abandonadas do país. No caso do Equador, usinas hidrelétricas, portos, aeroportos, infraestrutura para uma competitividade sistêmica tiveram um efeito virtuoso nos investimentos e nas atividades privadas - essa é uma realidade que está fresca na memória das pessoas. Portanto, quando a austeridade volta à tona é pouco provável que o político seja reeleito.
No caso do Brasil, se a democracia tivesse tido uma chance, após dois anos de governo Temer, Lula teria sido eleito. Se for dada uma chance à democracia, após o ano desastroso de Añez, acho que você verá o MAS eleito. Se fosse dada uma chance à democracia no Equador - as últimas pesquisas confirmam isso - e Correa fosse candidato, ele certamente venceria. Os candidatos escolhidos pelo partido de Correa têm grande probabilidade de vencer não só nas eleições presidenciais como também nas parlamentares, onde o partido provavelmente terá, no mínimo, a maior bancada na Assembléia Nacional.
Tudo isso é muito assustador para as elites equatorianas que não pouparam esforços e encontraram muitos Rubicões tentando reprimir as forças progressistas, Correa, e seus seguidores. Por terem atravessado tantas destas linhas vermelhas, é muito difícil para elas voltarem a ser pessoas simpáticas e retornarem ao meio democrático e institucional. Portanto, as elites vão ainda mais longe. Há um bom termo em francês para isso, ‘fuite en avant’, quando, paradoxalmente, se foge do problema indo na direção do mesmo, assim elas avançam ainda mais no autoritarismo para evitar este retorno, pois temem o que ele pode implicar.
Portanto, há muitos paralelos e semelhanças entre os projetos autoritários de direita na América Latina neste momento.
IP: Voltemos ao caso equatoriano por um segundo. Vários membros do Conselho da Internacional Progressista escreveram ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e ao Relator Especial da ONU sobre a Liberdade de Reunião Pacífica e Associação , instando-os a agir no caso do Equador e da manobra, fundamentalmente, ilegal das autoridades eleitorais ao recusarem o registro do Fuerza Compromiso Social, o partido de Rafael Correa. Como andam os esforços, ou a luta, por eleições livres e justas?
GL: O governo e seus aliados recorreram a duas estratégias para impedir a possível vitória do partido de Correa e seus apoiadores nas próximas eleições de fevereiro.
A primeira foi bloquear o próprio Correa, pois estão preocupados com os efeitos políticos da sua presença em solo equatoriano, e com a imunidade, já que, como candidato, quando a sua candidatura é aceita e registrada você tem imunidade até o final das eleições. Isto significa que Correa pode fazer campanha política no Equador, e nisso ele é muito eficiente , coisa que o atual governo sabe bem, pois perdeu todas as eleições para ele durante 10 anos. Portanto, não o querem no Equador. Mediante a condenação que o impede de concorrer e o mantém fora do país, eles o forçaram a levar adiante o seu ativismo político nas redes sociais, já que nem mesmo a mídia lhe dá espaço.
Atualmente, é muito difícil julgar alguémin absentia no Equador. Foram abertas mais de 30 investigações criminais contra Correa; 25 ainda estão em andamento. A maioria delas não poderia resultar em processos judiciais à revelia e, se não se pode ser julgado à revelia e não há sentença de culpa, então eles não podem impedir Correa de concorrer? Por fim encontraram um caso muito específico de suborno que pode ser julgado à revelia. Levaram o caso ao tribunal, e em abril deste ano saiu uma sentença condenando Correa - com base no testemunho de um ex-conselheiro seu, o qual alegou ter recebido dinheiro de várias pessoas do mundo dos negócios com o conhecimento de Correa.
Isso nos leva à caderneta e a como as anotações foram escritas no tempo presente: ‘Hoje, recebi tal e tal soma de tal e tal pessoa’, com os centavos exatos, e outra coluna que diz: ‘Dinheiro entregue’, como checando que o dinheiro foi ‘entregue’, ou ‘passado adiante’. Um diário em tempo real, redigido no tempo presente, a contabilidade em tempo real e um caderno de anotações em tempo real. Porém, foi revelado que a caderneta havia sido impressa fisicamente quatro anos após os supostos ‘fatos’. Assim, Pamela Martinez, ex-conselheira de Correa, teve que dizer: "Ah não, eu redigi a caderneta de memória e por impulso". O que, obviamente, deslegitimou o documento. No entanto, ele foi aceito pelo tribunal e pelos juízes sob enorme pressão, e serviu de base para a condenação a oito anos de prisão e, a suspensão dos direitos políticos de Correa durante 25 anos.
Do ponto de vista do governo e da aliança anti-Correa, o problema agora é que o único modo de impedi-lo de se candidatar é mediante a confirmação da sentença, ou se todos os recursos forem esgotados. A defesa de Correa apelou, obviamente. A sentença e o registro da sua candidatura serão dia 18 de setembro e, se os recursos não tiverem sido esgotados até esta data, Correa ainda será presumivelmente inocente e poderá concorrer ao cargo. Portanto, há uma verdadeira corrida contra o tempo para que os recursos de apelação se esgotem antes de 18 de setembro.
Em circunstâncias normais, sem pressão sobre o judiciário por parte do governo Moreno e seus aliados, poderiam transcorrer meses, e até mesmo anos, para esgotar o processo de apelação. Porém, neste caso tudo foi incrivelmente rápido. A pandemia atrasou e adiou todos os processos judiciais no Equador, o judiciário praticamente fechou, e a única exceção é o caso de Correa. Ele avança a uma velocidade que quebra os recordes anteriores de expediente na gestão da justiça. Então, é uma forma de tentar bloqueá-lo, e vamos ver se conseguem fazê-lo antes de 18 de setembro ou se haverá um juiz honesto que diga: "Não, eu não aceito isso". As elites estão cada vez mais divididas. Não há unanimidade sobre a perseguição a Correa, porque uma pequena fração da direita diz que eleições sem Correa, o correísmo ou o partido de Correa não seriam legítimas, não seriam críveis, e mesmo que os nossos homens da direita vençam, o próximo governo enfrentaria instabilidade política, protestos, não teria força política nem verdadeira legitimidade internacional.
Para o partido tudo é ainda mais complicado, porque Correa teve o seu próprio partido, a Alianza País, até 2017. Foi o partido de maior sucesso na história contemporânea do Equador, ganhou eleições presidenciais, parlamentares, e também referendos. No último mandato de Correa como presidente o partido tinha mais de dois terços dos assentos na Assembléia Nacional e era tão poderoso que foi capaz de reformar a Constituição. Contudo, em novembro de 2017, poucos meses após ser eleito, Moreno percebeu que o partido logo se tornaria uma enorme ameaça para ele, seria um partido de oposição, embora ele próprio fosse membro do Alianza País. O partido começou a protestar contra as reformas neoliberais de Moreno. Este conseguiu obter uma sentença favorável que lhe entregou o controle do partido, o qual se tornou uma pequena facção marginal. A maioria dos seus membros pulou fora do barco e os eleitores deixaram de votar nele, que era associado a Correa, obviamente, e não a Moreno, percebido como um traidor.
Moreno não é um homem forte. É um homem de transição que não será candidato nas próximas eleições. Tem a menor popularidade e aprovação na história da democracia equatoriana desde 1979, e compete com os índices de credibilidade de Abdalá Bucaram e Jamil Mahuad. Há poucas semanas uma pesquisa deu 8% de credibilidade a Moreno. Ele sabia que não poderia ter um partido próprio forte, e o que queria era que Correa não tivesse partido. Queria que os correístas não contassem com um instrumento forte de oposição. E conseguiu. Impediu Correa de ter um partido, e desde novembro de 2017 ele e seus seguidores tentam criar outro partido.
Contudo, isto tem sido sistematicamente impedido pelas autoridades eleitorais controladas por Moreno. Deste modo, em 2019, por fim, o maior movimento político, facção, força do Equador - o correísmo - que estava sem partido, conseguiu fazer um acordo com um partido político que já existia, e deste modo o partido Fuerza Compromiso Social foi usado como plataforma para o correísmo. Os partidários de Correa concorreram nas eleições municipais de 2019 por essa plataforma e se saíram muito bem. De repente, Correa tinha um partido político - não era o seu partido político, era um partido que já existia, mas ainda assim tinha um partido, podia concorrer, era possível ter candidatos correístas.
Desde julho as autoridades eleitorais baniram esse partido, o que é realmente inacreditável. Não se trata de autoritarismo sutil. Não se trata de perseguição judicial sutil. É usar a mão pesada. Eles tiraram o partido de Correa, que ele criara, depois o impediram de ter um novo partido, e quando ele conseguiu fazer um acordo - estava a tal ponto nas cordas que chegou a fazer um acordo com um partido pré-existente - eles se livraram deste partido. Essa decisão está pendente de recurso, mas, para todos os efeitos, a operação foi bem sucedida, pois os apoiadores de Correa tiveram de fazer acordo com outro partido para se apresentarem a tempo de concorrer às eleições de fevereiro de 2021. Participar de eleições nestas circunstâncias, com este nível de perseguição, é extremamente debilitante, confuso para os eleitores, embaraçoso, e o governo Moreno e seu pacto de elite sabem disso; esta tem sido a sua estratégia o tempo todo.
É aqui que a comunidade internacional pode desempenhar o seu papel mais importante - denunciando o governo de Moreno por não realizar eleições livres e justas, perseguir a oposição, barrar candidatos e tentar proibir a maior força política de participar das próximas eleições. Porém, na América Latina, a direita dura e neomccarthyista está no poder em tantos lugares que não houve nenhuma reação regional. A ONU está silenciosa e o sistema interamericano de direitos humanos, que respondeu às violações de direitos humanos, após os protestos de outubro de 2019, até agora não reagiu à violação dos direitos políticos no Equador.
Portanto, este é o próximo passo: fazer Moreno e seu governo prestarem contas internacionalmente e pressionar para que haja eleições livres e justas em fevereiro.
Foto: Jcabezasaguilar